segunda-feira, 18 de agosto de 2014

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Festival de Gramado 2014 - A Despedida, de Marcelo Galvão, comove e nos faz refletir sobre a decrepitude da velhice


Durante o debate com a equipe do filme A Despedida, o diretor e roteirista Marcelo Galvão disse que teve uma experiência inédita com este seu novo trabalho. Ele contou que em alguns roteiros costuma escrever cerca de cem páginas, mas que em A Desedida foram apenas 32. A informação por si só já é de grande relevância porque o tema central dessa edição do Festival de Gramado é justamente o roteiro e/ou a palavra. Mas ela se torna ainda mais interesante uma vez que garante ótimas reflexões sobre o trabalho de um roteirista e, sobretudo, o resultado dessa tarefa na tela.

Claro que A Despedida traz ideias verbalizadas por meio dos bem escritos diálogos dos personagens. São, enfim, as palavras - e são muitas, revezando-se em todos os seus significados de alegria, tristeza ou meramente da aceitação da vida e da morte. Mas é na fração do roteiro que dispensa o verbo - ao menos aquele que sai da boca do personagem - que está a verdadeira magia e encantamento de A Despedida. Galvão prova, em suas - numericamente - poucas páginas do roteiro, que a exata descrição da cena é que faz a diferença. Some-se a isso a delicadeza, sensibilidade e genialidade de um ator como Nelson Xavier e estamos diante de sequências da mais profunda beleza dramatúrgica e estética, sem a necessidade, em nenhum instante, de qualquer frase mesmo que monossilábica.


Se no belo Amor, de Michael Haneke, premiado com Oscar de melhor filme estrageiro, a realista apresentação das dificuldades de se lidar com a velhice causava-nos uma sensação de angústia, Galvão leva ao extremo a decrepitude de um homem que reconhece estar próximo do fim. Mas, ainda assim, parece arrancar das entranhas suas últimas forças para sair de cena com alguma dignidade. Os primeiros 15 minutos do filme são provavelmente os mais desconcertantes e desconfortáveis que já se viu no cinema. Almirante, o personagem de Xavier, é um senhor de 92 anos de idade. Ele se levanta da cama com a mesma dificuldade que alguém teria para erguer um corpo de uma tonelada. Arrasta-se lenta e dolorosamente pelo corredor de sua casa até o banheiro. Luta contra os minúsculos comprimidos, que pulam do frasco como se fugindo de suas mãos trêmulas. Causa-nos calafrios ao manusear a lâmina de barbear, que nunca desliza pelo seu rosto, mas sim trava uma luta de socos contra os pelos da barba.

Galvão, por um lado, é ousado ao escancarar o quão sofrível são essas tarefas para aquele homem. Nelson Xavier, por sua vez, entrega-se de corpo e alma ao literalmente despir-se de todo tipo de pudor. E é assim, exibindo sua flácida nudez, que Almirante volta para o quarto para a segunda parte de seu maior desafio: vestir a ceroula, as calças, calçar meias e sapatos, abotoar a camisa e o paletó. É uma batalha longa e quase sem fim, mas que a cada tarefa vencida, um sorriso é estampado na face do Almirante.

O que vemos a seguir neste A Despedida é a jornada de um ancião preparado e consciente para despedir-se da vida. Passo a passo, passeia pela cidade de São Paulo: vai tomar um café e pagar uma conta pendurada no bar; procura um velho amigo, com teve alguma desavença no passado, a fim de fazer as pazes; para numa praça e, enquanto espera pelo neto que nunca aparece, viaja em suas memórias após alguns tragos no cigarro de maconha de uns jovens desocupados.

Por fim, Almirante segue para seu objetivo final: encontrar, pela última vez, a triste, bela e insinuante Morena (Juliana Paes). Ainda que 50 anos mais jovem, Morena é uma antiga amante do Almirante. O carinho, a preocupação, os gestos da mulher mostram que existe sim amor nessa relação. Memórias de Minhas Putas Tristes, romance de Gabriel García Márquez, é certamente a referêcia mais próxima na construção do ambiente e dos personagens. Mas Marcelo Galvão explicou que a história foi inspirada em seu próprio tio, que aos 90 e tantos anos de idade mantinha um relacionamento com uma amante, num verdadeiro embate entre o físico e a mente. Mesmo que o corpo já não mais demonstrasse alguma capacidade, era o cérebro quem o controlava. E mantinha a libido, além de tudo.

Aliás, é ao mesmo tempo corajosa e sensível a forma como Marcelo Galvão trata em seu filme a questão da sexualidade na velhice. Tema espinhoso, complicado, porque é sempre uma tendência imaginarmos que os velhos já não fazem mais amor. Assim, é reveladora e em determinado instante excitante a ideia (e sobretudo a imagem) do casal Morena e Almirante na intimidade dos corpos. Aqui, faz-se obrigatório mencionar que Juliana Paes, assim como Xavier, exercita a total entrega como atriz. "Eu disse para o Nelson não se acanhar", contou Juliana Paes. "Falei para ele não ficar imaginando que estaria se aproveitando de mim, mas que era para aproveitar e passar as mãos pelo meu corpo sem constrangimento", completou. O resultado é uma sequência de sexo belíssima e verdadeira.

Fato é que Marcelo Galvão nos entrega um filme sensível, comovente e honesto. Ao trabalhar com o realismo explícito na construção de seus personagens, cria uma história que nos faz pensar na nossa própria existência e, mais que isso, em nosso fim. E se é para termos isso em mente, que seja, a exemplo da força na alma e da paixão de um Almirante e de uma Morena, por meio da total fruição.